terça-feira, 13 de outubro de 2020

(Diálogos Lusófonos)


OS JUDEUS ESQUECIDOS DE ANGOLA:

Mito e realidade na herança sefardita

Por JAIME AZULAY  13 de maio de 2014

A recuperação do cemitério judaico da Várzea assinalou a passagem de mais de 150 anos da chegada dos primeiros judeus sefarditas a Cabo-Verde. 
Pretendeu-se assim preservar a sua memória e honrar as contribuições que prestaram ao desenvolvimento do arquipélago.
Um dos benfeitores do Projecto de Preservação da Herança Judaica em Cabo-Verde é o Rei Mohamed VI do Marrocos, que se fez representar no evento pelo seu conselheiro sénior André Azoulay. 

Temos assim a situação insólita de “um monarca muçulmano a contribuir para um projecto judaico num país cristão”

No mesmo âmbito estão previstas pesquisas e trabalhos de investigação com instituições universitárias locais bem como um simpósio internacional em 2015 com a participação de pesquisadores africanos, da Europa e dos Estados Unidos da América. Para além do interesse científico, Cabo-Verde terá ganhos com o fluxo anual de mais turistas interessados em conhecer a herança judaica naquele país africano.
De acordo com a Wikipédia, o chamado povo judeu não é actualmente reduzido somente à religião, raça ou cultura. O termo "judeu" originalmente era usado para os filhos de Judá, filho de Jacó. Posteriormente foi atribuído aos nascidos na Judeia. Depois da libertação do cativeiro da Babilónia, os hebreus começaram a ser chamados de judeus.

A palavra portuguesa "judeu" tem origem do latim "judaeu" e do grego "ioudaîos". Ambas vêm do aramaico," ?????," que se pronuncia "iahude". 

A origem dos judeus é tradicionalmente datada de aproximadamente 2000 a.C. Na Mesopotâmia, a destruição de Ur e da Caldeia forçou a população a imigrar para outros lugares. A família de Abraão estava entre os que imigraram para a Assíria. Abraão é considerado o fundador do Judaísmo. Judeus anteriormente presos e escravos dos romanos chegaram a “Sefarad” na Espanha, de onde viriam a ser expulsos mais tarde, em 1492, indo para o norte de África.

Os "Sefarditas", oriundos de Marrocos e Gibraltar chegaram a Cabo-Verde em meados do século XIX, após a abolição da escravatura e um acordo entre Portugal e a Inglaterra. Eles dedicaram-se predominantemente ao comércio internacional, à navegação e à administração pública.
Entretanto, foi assinalada uma presença anterior ao século XIX que é, no entanto, difícil de documentar. Tratavam-se de judeus convertidos ao cristianismo, os chamados “cristãos-novos”, como sustenta a pesquisadora Carol Castiel que lidera o projecto de Preservação da Herança Judaica em Cabo-Verde (CVJHP, sigla inglesa).

A viagem contínua de judeus sefarditas ao longo da costa oeste da África continental, no século XIX, estendeu-se a partir de pontos intermédios localizados nos arquipélagos dos Açores, Cabo-Verde e São-Tomé e dali em direcção às antigas colónias de Angola (com entrepostos ou filiais comerciais em Banana e Goma, actual R.D.C.) e Moçambique. Foram provavelmente atraídos por uma florescente actividade mercantil que lhes permitia, com os seus conhecimentos e aptidões, rapidamente obter fontes de sustento longe dos seus países de origem onde eram alvo de perseguição.
Tal como atrás foi referido, ao longo dos séculos XVI-XVIII já pululavam pelo actual território de Angola os chamados “cristãos-novos” misturados aos grupos traficantes, contratadores e armadores envolvidos no tráfico negreiro Atlântico, como referem vários autores.

Em 1492, entre 120 a 150 mil judeus espanhóis foram expulsos por monarcas católicos para Portugal, onde se juntaram aos 100 mil judeus portugueses. Nessa altura Portugal tinha 1 milhão de habitantes.
Pressionado pela vizinha Espanha, o rei de Portugal ordenou, por Decreto, a conversão em massa de judeus que, não tendo outro local para ir, resignaram-se ao catolicismo, formando os “cristãos-novos”.

Segundo frisou a pesquisadora brasileira Anita Novinsky num trabalho sobre o passado judaico no Brasil (Os cristãos-novos da Baía, Editora Perspectiva, 1972) a conversão à força dos cristãos-novos, os anussim ou injuriosamente designados por marranos por não comerem carne de porco, não correspondeu aos padrões do chamado cripto-judaísmo, conformado numa prática sincrética de cristianismo e judaísmo (oculto) utilizada posteriormente pelos judeus brasileiros.

As entradas desses emigrantes no território, ao contrário do que acontecia noutras colónias, não foram objecto de registo. A saga em Angola é considerada pouco visível quando comparada à dimensão observada em outras áreas geográficas da diáspora judaica, como refere Aida Freudenthal, colaboradora do Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica Tropical no livro “Judeus em Angola-séculos XIX e XX”. Devido à sua incontornável referencialidade da obra em causa, a ela recorreremos sistematicamente ao longo da nossa abordagem, bem como à indispensável “Enciclopédia Judaica, Jerusalém, 1971” editada por Cecil Roth e G. Wigoder
Os judeus em Moçambique, Angola e Cabo Verde, Lisboa, 1975 de Alberto Iria e ainda “Survival and adaptacion. The portuguese jewish diaspora in Europe, África and the new world, New-York, 2002” de Joseph Levi, entre outros.

EM BUSCA DA PROLE SEFARDITA
Há cerca de 20 anos, assumi a responsabilidade de abordar a questão dos judeus de Angola, a pedido de uma fundação hebraica brasileira que me contactou através de um fax enviado para a estação de rádio LAC. Falei com o escritor Raúl David, a quem expus as linhas do meu projecto. Raúl aceitou trabalhar comigo. Na altura, o veterano escritor angolano contava mais de 80 anos de idade. No entanto, gozava de uma saúde juvenil e era privilegiado com uma memória de elefante. Como valor acrescentado, ele conhecera pessoalmente muitos judeus espalhados por Angola desde as primeiras décadas do século XX. Eram esses indivíduos o nosso alvo e a quem iríamos seguir o rasto até aos seus descendentes actuais.

Sabia-se de antemão que, com a necessidade de integração social, foi frequente a união entre judeus sefarditas e “filhas da terra”, o que tinha dado origem a agregados familiares com numerosa prole amestiçada. 
A proveniência urbana dos sefarditas marroquinos ou gibraltinos tê-los-ia imunizado contra as teses racistas que estavam em crescendo sobretudo na Europa (Aida Freudental, idem) o que provavelmente, na prática, terá facilitado esses relacionamentos. Contudo, punha-se a questão de os cânones hebraicos não considerarem judeus os filhos nascidos de uniões mistas, quaisquer que elas sejam.
A tradição normativa religiosa do hebraísmo, a Halachá (Lei tradicional da Torá) define que uma pessoa nascida de mãe judia é um judeu (www.chabad.org.br), independentemente da sua cor ou nacionalidade. Um não-judeu pode converter-se somente de acordo com as condições haláchicas e a aceitação de todos os mandamentos da Torá. Segundo tais critérios, os casamentos mistos e a assimilação afastam o povo judeu das suas raízes. Para a Torá, todo o judeu tem valor intrínseco e é um componente essencial do povo judeu, sem o qual a nação inteira não pode realizar o seu pleno potencial” (idem). Na descendência judaica a linha matrilinear é maioritária, apoiada pelo "judaísmo rabínico", ortodoxo e conservador e é a que ganha mais força por ser apoiada pelo Estado de Israel.
Todavia, existe a tese do judaísmo reformista que tem introduzido novas filosofias. A partir de Março de 1983 foi reconhecida a descendência paterna, mesmo que a mãe não seja judia, bastando que a criança "seja criada como judeu e se identifique com a fé judaica". Igualmente, contrariando as considerações “haláchicas” são destacados outros factores seculares, políticos e identificações ancestrais que definem quem é judeu de forma mais abrangente. O certo é que o povo judeu é heterogéneo do ponto de vista racial, fruto das migrações constantes e consequentes ligações com outros povos, que resulta numa miscigenação com evidentes disparidades morfológicas entre os indivíduos (vide a UNESCO e questão racial na ciência moderna, em http://pt.wikipedia.org). Como o assunto é eivado de divergências insanáveis, deixámo-lo em aberto, pelo menos por enquanto.
A procura de traços identitários de uma possível comunidade de descendentes judeus em Angola chegou a interessar também à Dra. Tamar Golan que ocupou o cargo de primeira embaixadora plenipotenciária de Israel em Luanda entre 1995 a 2001. Ela ficaria em Angola até 2003. Tamar tinha projectos culturais interessantes que não chegaram a concretizar-se. Em diversos momentos procurou estabelecer contacto com os descendentes dos judeus que viveram em Angola. Chegou a convidar-me para algumas celebrações judaicas em Luanda. Da única ocasião em que por lá apareci, lembro-me de ter visto pessoas conhecidas de famílias angolanas descendentes. Quando faleceu a minha tia Isabel Azulay, a embaixadora enviou-me uma fraterna mensagem de condolências. Contudo, as coisas ficariam por ali. Tamar Golan viria a falecer no dia 30 de Março de 2011.
Com o escritor Raul David, tínhamos garantido um filão para explorar com o qual sustentaríamos as conclusões da pesquisa. Entretanto, observa-se o recrudescer da guerra em Angola ao longo de toda a década de 90. Pouco tempo mais tarde o inesperado acontece: Raul David morre em Benguela. O duro golpe e a situação de beligerância armada vigente no país levar-me-ia a arquivar o projecto por absoluta falta de motivação. Nesse interim receava-se pela integridade de um dos poucos testemunhos materiais indispensáveis a qualquer pesquisa sobre o assunto. Os vestígios dos túmulos judeus no cemitério de Benguela corriam o risco de desaparecer ou serem profanados, conforme várias pessoas alertavam.
Tal como eu tinha inicialmente projectado com R. David, o desafio consistia em investigar a saga de judeus sefarditas que chegaram dispersos às então colónias portuguesas de Cabo-Verde, Moçambique e sobretudo Angola, no regurgitar da actividade comercial no século XIX. Depois disso, os judeus da África Ocidental ou os seus descendentes, ficaram esquecidos durante mais de um século. Sabia-se, isso sim, que tinham constituído famílias angolanas não só em Luanda e Benguela mas também no sertão, como na vila de Longonjo, onde por volta de 1930 os irmãos Benoliel tinham instalado uma cerâmica e com uma relativa prosperidade ficaram muito conhecidos em toda a região centro. Até hoje lá se encontram bem visíveis as ruínas da fábrica.
Aida Freudenthal 
considerou prematuro definir uma identidade judaica sefardita em Angola, em razão da sua condição de minoria dispersa na vastidão do território. Os judeus acolhidos pela sociedade colonial nos séculos XIX e XX não tiveram a possibilidade de constituir uma comunidade coesa arreigada numa identidade própria, capaz de preservar os factores aglutinadores comuns, que os judeus mantiveram noutras áreas geográficas da sua conturbada diáspora. Para a pesquisadora, os dados até agora reunidos não permitem a elaboração do seu perfil sociológico, nem a sua identificação em judeus ricos e pobres, de assimilados, liberais e ortodoxos. Contudo, tratando-se de indivíduos provenientes da região africana do Magrebe com uma vivência cultural resultante da estrutura social judaico-marroquina “não é absurdo supor que partilhavam uma História e uma Cultura comuns”.
Para além da religião, há a peculiar forma como os judeus se alimentam, se vestem, as suas músicas e o uso do dialecto haquitia que integrava elementos do hebraico, espanhol e árabe, para além das línguas inglesa e francesa que dominavam, em função das suas proveniências. 
Muitos tinham a cidadania inglesa obtida em Gibraltar ou a portuguesa concedida por mercê régia, ao longo do séc. XIX (J. M. Abecassis, Genealogia Hebraica, Portugal e Gibraltar, Lisboa, 1990).
Portanto, não existem evidências em Angola de práticas religiosas comuns entre os judeus sefarditas (vide Aida, ibidem, pág 257). Quanto a nós, parece-nos que o facto se explica devido ao reduzido número de membros. Havia dificuldade, por exemplo, em conseguir reunir o núcleo designado por myniam que é constituído por um mínimo de dez homens, indispensável nas práticas litúrgicas. A falta de um rabino e de um templo, por exemplo, inviabilizavam certo tipo de cerimónias religiosas.
Freudenthal sustenta que o declínio do comércio na colónia de Angola, com a crise de 1929, devido à redução das transacções, afectou muitas firmas comerciais, o que poderá ter motivado o retorno de comerciantes sefarditas cujos negócios tinham ramificações em vários países da Europa. O afrouxar das transacções no comércio colonial trouxe alterações profundas que provocaram a diminuição da comunidade sefardita e a consequente integração dos seus descendentes na sociedade colonial. Para os que ficaram, “assimilar passou a ser a palavra de ordem, daí ter sido um facto a aculturação dos judeus sefarditas”, concluiu a pesquisadora.
Nos tempos que correm, a questão é descobrir quantos são e em que localidades se encontram a viver os descendentes dos emigrantes oriundos do Magrebe africano e da Europa que se quedaram por Angola mesmo depois da crise de 1929. De certeza que não se tinham pura e simplesmente eclipsado, daí existir uma grande curiosidade perante certas dúvidas. Seria que ainda viviam em Angola? Com que matrizes se caracterizavam? Manteriam em comunidade os traços da milenar religiosidade e cultura judaicas ou se tinham simplesmente convertido ao cristianismo como acontecera com os marranos (cristãos-novos)? Ou ainda seria que tinham diluído as suas manifestações ancestrais nas práticas sincréticas dos cultos africanos?
Na altura havia também a considerar uma delicada situação: seria que os angolanos detentores de ascendência judaica estariam na disposição de aceitarem em público o facto de serem eles, também, judeus descendentes? 
Após a independência de Angola em 11 de Novembro de 1975, muitos deles tinham conseguido ascender a lugares de destaque na hierarquia do poder. Outros se tinham integrado nas forças armadas e tinham participado nas guerras angolanas sem que alguém lhes tivesse impedido sequer de lutarem pela sua pátria devido ao facto de terem a correr nas suas veias resquícios de sangue judeu.
Actualmente, na sua totalidade, estes indivíduos encontram-se profundamente inseridos na matriz sócio-cultural angolana. São detentores das inerentes qualidades de nacionalidade e cidadania como os demais. Para muitos deles, talvez não exista interesse na exposição das suas raízes judaicas. Preferirão, provavelmente, a fim de evitar mal-entendidos e a eventualidade da acção de sectores arreigados aos seus atávicos preconceitos anti-semitas.

JACQUES ATTALI E O FRASCO DE ENXOFRE
Inesperadamente, ou talvez não tanto, eis que, novamente, tenho em mãos o assunto dos judeus em Angola, após o mesmo ter hibernado por longo tempo no baú do esquecimento. Não obstante os anos passados, o enigma permanece. Não restam dúvidas de que se trata de uma abordagem complexa, intrincada e provavelmente polémica, muito susceptível a eventuais conexões que se lhes pode aduzir.
Experimento a mesma sensação que arrasou Henry Sobel quando escreveu o prefácio da edição brasileira de um livro fascinante e perturbador de Jacques Attali que analisa de forma brilhante e extensa as possíveis razões históricas, sociais e teológicas que permitiram que os judeus se catapultassem para o domínio das finanças internacionais, municiando, em contraponto, o tradicional leque de inimigos e detractores anti-semitas que vão desde os cristãos que acusaram os judeus de “terem sugado o sangue de Cristo” até o acicatar das versões mais perversas do fundamentalismo Islâmico.
Jacques Attali é um judeu francês de ascendência argelina, um Guru em matéria de banca e finanças. Funcionou no Eliseu como conselheiro especial do presidente François Miterrand durante 10 anos, na década de oitenta. Actuamente é um dos intelectuais mais respeitados no seu país, a França. Publicou dezenas de obras literárias, entre as quais o polémico “ Les juifs, l´argent et le monde” publicado no Brasil em 2011 pela Editora Saraiva com tradução literal do sugestivo título original: “Os judeus, o dinheiro e o mundo”.
No prefácio, Henry I. Sobel que é o presidente do Rabinato da Congregação Israelita de S. Paulo disse, num sincero assomo de desencanto e perplexidade: “preferia que tal obra jamais tivesse sido escrita”. E por ali não ficou. Não suportou o irreprimível melindre pelo facto de J. Attali, o autor, ter esmiuçado a relação “supostamente obsessiva” entre os judeus e o dinheiro desde tempos remotos. “Não entendo – frisou o rabino – porque uma pessoa esclarecida queira retomar o assunto logo agora, numa época em que o anti-semitismo dá sérios sinais de recrudescimento no mundo inteiro”.
Pareceu-me que o único conforto encontrado nas palavras escritas pelo rabino de São Paulo é que o autor, já na etapa final do livro, por intermédio de novas interpretações de factos já conhecidos, conseguiu comprovar a salvadora tese, segundo a qual, o propalado apego dos judeus ao dinheiro não resultou de uma “opção”, mas sim de uma “imposição” de factores circunstanciais. É consequência dos seculares exílios, das perseguições e da dispersão desde as viagens dos patriarcas com a peregrinação pelo deserto do Sinai a caminho da Terra Prometida. Resultou destas circunstâncias que “o dinheiro foi o único bem portátil dos judeus e o seu privilegiado instrumento de sobrevivência”.
Tal como sucedera com Henry Sobel, a bola sobraria irremediavelmente para mim, desde o momento em que o jornalista Itamar Souza publicou na edição de Julho de 2013 da revista “África 21” um artigo com o título “Judeus, o destino passou por Benguela”, no qual alude a um projecto de instalação de uma colónia de 600 mil judeus em Angola, empreitada sonhada por um grupo de intelectuais judeus, entre os quais Alfredo Bensaúde, Jacob Teitel, Wolf Terló e Israel Zangwill, isso no início do século XX. No entanto, os 159 colonatos previstos nunca chegariam a ser instalados nas terras férteis vale do Cavaco, no litoral de Benguela, onde “não existiam árabes palestinianos” (www.fmsoares.pt/aeb/crono/id?id=01855).
A verdade, porém, é que nunca se viria a verificar uma migração em massa de judeus da Europa e do Norte de África, rumo à colónia portuguesa de Angola, com o fito se instalarem, conforme pretenderam Alfredo Bensaúde e seus pares. Nem foram encontradas referências credíveis de judeus que fugiram da Europa por alturas da Segunda Guerra Mundial iniciada em 1939.
As gerações de angolanos que existem actualmente com sangue judaico, descendem, salvo alguma excepção, dos judeus sefarditas que chegaram esparsamente a Angola na segunda metade do século XIX. Freudenthal menciona uma reduzida lista com os nomes de famílias entre as quais despontam Amzalak, Ashai, Azulay, Bendrão, Benchimol, Benoliel e Cohen. Estes são descendentes de judeus que nada tinham a ver com os planos de Israel Zangwil e Alfredo Bensaúde. Individualmente ou em pequenos grupos familiares, se foram estabelecendo progressivamente entre Benguela e Luanda, factos aliás, já referenciados por Aida Fredenthal no livro “Judeus em Angola-séculos XIX-XX”, que vimos referindo e no qual é analisada a diáspora sefardita na mais importante colónia lusitana de África.
Porquê voltar a falar dos judeus em Angola? O que se pretende? Ora, não estão descuradas interpretações grosseiras, nem o evoluir de premeditados preconceitos de que seja intenção do autor reconstituir árvores genealógicas com potencial suficiente para fazer ressurgir na sociedade angolana uma categoria de pessoas diferenciadas.
Assistem-nos razões justificadas exclusivamente pela investigação científica, para pegarmos em mãos a abordagem da questão, ainda que com a estranha sensação de estar destapando uma vasilha de enxofre no meio de um público imprevisível que, a qualquer momento, nos pode fazer sentir o desconforto do estigma. Referimo-nos a pessoas que cultivam preconceitos e esperam simplesmente oportunidades, quaisquer que sejam, para destilá-los de forma hostil contra os judeus, tido por povo errante desde a antiguidade, condenado à dispersão e ao exílio permanente sofrendo na carne e no espírito ignomínias e uma infinidade de crimes horrendos que a História registou nos seus anais.

CONCLUSÕES
À guiza de conclusão dos factos apontados, não pode ser posta em causa a existência de uma herança judaica em Angola. Contudo, concordamos com Aida Freudenthal quando formula que na actualidade, não existe no país uma comunidade judaica como tal, formada por descendentes dos judeus sefarditas, provida de sinais identitários exteriores comuns. Portanto, os descendentes já não praticam a religião dos seus antepassados.
Nas pesquisas sobre a presença de Judeus em Angola, nunca foram encontrados sinais ou relatos credíveis da edificação no território de uma sinagoga ou outro templo para servir como local de culto mesmo nas zonas de maior concentração como Catumbela e Benguela. Em Moçambique, foi construída uma sinagoga e judeus abastados saíam de Angola para a colónia do Índico a fim de cumprirem os rituais judaicos, como atestam os historiadores.
Ao longo de século e meio, as sucessivas gerações foram assimilando os aspectos da cultura local e nela se integraram naturalmente como mais uma peça do mosaico angolano de tal sorte que, para se conhecer a dimensão e composição da prole deixada pelos judeus sefarditas, é exigido trabalho apurado devido à falta de fontes materiais.
Do que se investigou até hoje, para além dos nomes e sobrenomes de raiz hebraica que se mantiveram intactos, os vestígios materiais da herança judaica em Angola resumem-se nas nove sepulturas alinhadas com inscrições em hebraico e português no cemitério municipal de Benguela ao lado de campas cristãs. São referidas outras 13 na vila da Catumbela (Alberto Iria, idem) e umas poucas na antiga vila de Bela-Vista, hoje chamada Catchiungo, na província central do Huambo.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Chove. E é triste.

Basta de sermos apenas espectadores!

In Expresso Curto
"Estranho mundo este em que um dia de chuva nos preocupa como se fosse uma guerra e uma guerra nos parece tão banal como um dia de chuva"
Ricardo Marques
RICARDO MARQUES
JORNALISTA
 
Chove. E é triste
28 de Fevereiro de 2018
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Há poucas coisas tão simples e tão complicadas como o tempo que faz lá fora numa manhã como esta. É o inverno, e o inverno é assim. É feito de chuva, de neve, de vento forte e de mar bravo, de trovoadas e granizo e frio. Há escolas fechadas, estradas cortadas, acidentes de trânsito e pessoas a quem acontecem coisa más. Muito más. Mas olhamos pela janela como quem olha para o mundo. E aceitamos. Faz parte da vida.


O mais complicado é explicar porquê. Porque é que, de repente, desata a chover e a nevar e há alertas de todas as cores? Tem a ver com o posicionamento do anticiclone dos Açores? Em parte, sim. Está iminente o choque de uma massa de ar quente vinda do Atlântico com uma massa de ar frio vinda da Rússia? Também - e quanto maior a diferença entre as duas massas mais severas são as condições do tempo. Mas há algo mais.

Comece por este artigo e siga para o The Guardian, onde é possível ler este texto que ajuda a complicar a situação. "Apesar de a maioria das notícias nos últimos dias terem tratado o frio na Europa num tom descontraído, existe a preocupação de que estamos a assistir não ao regresso dos invernos normais, mas sim à deslocação de algo que deveria estar a acontecer mais a norte", escreve o jornal. (Guerras de bolas de neve no Vaticano sempre deram melhores imagens do quegente a morrer de frio.)


O estado do tempo que temos, e que aceitamos calmamente sem pensar duas vezes, é na verdade a consequência direta de um fenómeno sério que terá ocorrido no vórtice polar, ao nível da estratosfera. Claro que, a seguir, será preciso explicar o que causou esse fenómeno e, provavelmente, o que causou a causa e por aí fora. E é aqui que, mesmo depois de ler o artigo, nos perdemos. A estratosfera é demasiado longe, o vórtice polar demasiado estranho e, convenhamos, há sempre coisas mais importantes.


A meteorologia ainda é uma ciência avessa aos extremos. Os meteorologistas são capazes de descrever o nascimento do elefante que está a chegar, podemprever o percurso que o paquiderme vai fazer e até se o dito vai ficar cansado pelo caminho. Avisam-nos que não é recomendável estar à frente do bicho e que, provavelmente, vai haver estragos. Mas há duas coisas que não conseguem garantir: quantos elefantes vão nascer e onde é que as suas enormes patas vão cair com mais força.

Essa incerteza – que nos leva a discutir se existe aquecimento global e a ficar em pânico com a seca e também com o excesso de chuva - é a derradeira certeza de que o ser humano ainda não sabe tudo. Mesmo que pense que sim.

Os homens conseguem meter um míssil numa janela do terceiro andar de um prédio numa rua na Síria, mas não conseguem adivinhar o local exato que vai ser arrasado por um tornado. São capazes de apontar uma arma carregada à cabeça de outro ser humano e de apertar o gatilho, com a certeza de que vão tirar uma vida, mas nada sabem sobre a próxima grande cheia. Sabem exatamente a quantidade de químicos que devem meter numa ogiva para desaparecer toda a vida num bairro, mas não lhes peçam para indicar qual árvore que vai ser destruída por um raio.

E depois olham incrédulos para o que resta de uma aldeia destruída por um deslizamento de terras, mas não perdem um minuto a olhar para uma cidade arrasada por bombas. A natureza é imprevisível, implacável e capaz de estragos que nos deixam desesperados com a nossa ignorância.

Estranho mundo este em que um dia de chuva nos preocupa como se fosse uma guerra e uma guerra nos parece tão banal como um dia de chuva. É ténue a linha que separa o inverno do inferno.

Olhamos pela janela, ainda chove. E nunca vai deixar de chover, porque estaremos sempre demasiado ocupados atentar compreender absolutamente a natureza e sem tempo para nos confrontarmos, a sério, com a irracionalidade dos nossos próprios atos.
 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Alcácer Ceguer, a cidade redonda

Alcácer Ceguer, a cidade redonda


O arco da Couraça de Alcácer Ceguer
A história de Alcácer Ceguer encontra-se intimamente ligada ao Estreito de Gibraltar e à travessia entre as suas margens. Assim foi no período do Al-Andalus, servindo de base para o embarque dos exércitos muçulmanos durante as várias ofensivas na Península, como durante o período das praças-fortes portuguesas, assegurando uma continuidade do domínio da navegação ao longo da costa marroquina, uma espécie de vigia de alerta à actividade do “corso da barbária”.
Apesar disso, Alcácer Ceguer nunca assegurou o domínio territorial terrestre português na margem Sul do Estreito, apesar da sua reduzida distância a Ceuta e Tânger, devido à irregularidade do terreno e à luta constante que as tribos da região e o poder do Reino de Fez impuseram. À semelhança de todas as outras praças-fortes, Alcácer foi um reduto fechado ao território envolvente, abrindo-se apenas para o mar, tenda na sua Couraça o elemento prático e simbólico dessa abertura.
Abandonada após a evacuação portuguesa, a cidadela degradou-se e tornou-se num sítio arqueológico. Desde há alguns anos que começou a ser escavada e estudada e hoje os seus principais vestígios encontram-se em recuperação e valorização, permitindo uma visita esclarecedora daquilo que foi o “castelo da travessia” durante o período da ocupação portuguesa.
O Estreito de Gibraltar, vendo-se ao centro o Rochedo de Gibraltar, “Jebel Tarik” ou Montanha de Tarik
Antes do século X existia no local um ribat que conheceu várias designações, como Kasr Sad (nome de uma surat do Alcorão), Marsa Bab Al-Yem (Porto da Porta do Mar), Marsa Al-Yem (Porto do Mar), Bab al Kasr (Porta do Castelo), Madinat Al-Yem (Cidade do Mar) e Al-Kasr Al-Awel (O Primeiro Castelo). Estas designações reflectem bem a vocação marítima do castelo. Aliás, as pequenas baías e praias situadas entre Ceuta e Tânger cumpriram um papel fundamental na logística de travessia do Estreito por Tarik Ibn Zyad e Mussa Ibn Nussayr em 711 e 712. Posteriormente, Alcácer Ceguer seria o ponto de travessia para as invasões Almorávida e Almóada, tendo as tropas de Yussuf Ibn Tachfin utilizado o local em 1088 e as de Abdel Moumen em 1195. (EL BOUDJAY, 2017, entrevista citada)
No período Almóada o castelo chama-se Qasr Masmuda, nome de uma das principais confederações de tribos Berberes de Marrocos. O geógrafo Al-Idrisi, na sua Geografia do Ocidente, fala assim do Estreito de Gibraltar e da localização do Qasr Masmuda:
“O comprimento deste estreito conhecido pelo nome de Zuqâq (“a ruela”) é de doze milhas. Na sua extremidade oriental, vemos a cidade de Algeciras (Al-Jazîrat Al-Khadrâ, “A Ilha Verde”) e do lado ocidental a de Tarifa (Jazîra Tarîf, “Ilha de Tarîf”), em face da qual, na margem oposta, está situado Qasr Masmûda (…) Entre Tarîfa e Qasr Masmûda, a distância é de doze milhas.” (AL-IDRISI, 1999, pág. 247)
Nesse período o castelo já se encontrava associado a uma estrutura urbana muralhada, como Al-Idrisi comenta:
“Contam-se doze milhas de Ceuta a Qasr Masmûda para ocidente. É um grande burgo fortificado à beira do mar. Constroem-se aí navios e barcos destinados à navegação para o Al-Andalus. Está situado no estreito, no ponto mais próximo das cidades do Al-Andalus. De Qasr Masmûda a Tanger, contam-se vinte milhas, para ocidente.” (AL-IDRISI, 1999, pág. 249)
O Castelo de Alcácer Ceguer
Al-Hassan Al-Wazzan Al-Fassi, conhecido como Leão “o Africano”, afirma na sua obra “Descrição de Africa” a propósito de Alcácer:
“Esta pequena cidade foi edificada sobre o mar Oceano, distante de Tânger aproximadamente doze milhas, e dezoito de Ceuta, por Mansour, rei de Marrocos, o qual passando todos os anos a Granada, encontrava uma certa passagem entre algumas montanhas por onde se vai ao mar, que é difícil de passar; pelo que, construiu esta cidade numa bela planície, que descobre toda a costa de Granada, e que está à ao alcance desta. A cidade é fortemente defendida, os seus habitantes são quase todos marinheiros, fazendo frequentemente a viagem entre a Barbária e a Europa. Outros são tecelões de teares, muitos são ricos mercadores e gente corajosa. O rei de Portugal tomou-a de assalto, e o rei de Fez tentou, várias vezes, reavê-la por todos os meios que pode: mas trabalhou em vão, no ano de 863 da Hegira (1458 d.C.)” (LÉON AFRICAIN, 1896, pág. 247-248)
Marmol y Carvajal descreve-a desta forma:
“É uma pequena cidade construída por Yacub Almansor sobre a costa do Oceano, quase a meio caminho de Ceuta e de Tânger, no local mais apertado do estreito, que está apenas a cinco milhas de trajecto frente a Tarif. Este príncipe sendo tão guerreiro que vinha quase todos os anos fazer guerra em Espanha, e porque o caminho até Ceuta onde ele embarcava normalmente era incómodo para a passagem de um exército, construiu esta cidade num lugar mais cómodo que está apenas a três léguas da costa de Espanha, num lugar mais vantajoso do estreito, onde existe um bom porto para os navios. Enviou de lá o seu exército e os seus navios com menos perigo que de Ceuta, e chamou-lhe Alcácer Ceguer ou Pequeno Palácio, porque inicialmente construiu apenas um pequeno alojamento em comparação com Alcácer Quibir e outros. Mas em pouco tempo mandou construir várias casas e mesquitas, e encheu-a de uma grande quantidade de mercadores, artesãos e gente do mar.” (MARMOL y CARVAJAL, 1667, pág. 233)
Alcácer Ceguer pré-portuguesa. Fonte Jorge Correia e Charles Redman
As muralhas actuais terão a sua origem no período Merinida, durante o qual o castelo toma o nome de Kasr El Majaz e Kasr El Jawaz, ou Castelo da Travessia ou da Passagem.
Segundo Abdelatif El Boudjay, arqueólogo conservador do local, Alcácer Ceguer “não era uma grande cidade. Foi construída com base num projecto urbano estabelecido e pensado previamente. Tem uma muralha perfeitamente circular construída no reinado do sultão merínida Youssef Ibn Abd Al-Haq em 1287. É uma muralha com altura de quase 8 metros, largura de 1,60 metros, defendida por 29 torres semi-circulares e rasgada por três portas monumentais (Bab Al-Bahr, Bab Fès e Bab Sebta). Um tal projecto urbano apenas podia ser realizado por um poder central.” (EL BOUDJAY, 2017, entrevista citada)
Jorge Correia salienta a singularidade da forma circular do perímetro muralhado e questiona a sua eventual relação com outros exemplos longínquos:
“O desenho quase perfeito de uma circunferência não parece corresponder nem aos canones do mundo islâmico nem à tradição de construção de cortinas fortificadas no Norte de Africa nem no Al-Andalus, representada pelos Almorávidas, os Almóadas ou os Merinidas. Contudo, poderemos ler em Qsar es-Seghir uma réplica do modelo circular da grande capital Abássida, Bagdade?”(CORREIA, 2013, pág. 2)
A designação actual, Ksar Seghir ou Castelo Pequeno, remonta provavelmente ao final do século XV, quando se torna num ninho de corsários. No período da ocupação portuguesa o nome é adaptado para Alcácer Ceguer ou simplesmente Alcácer. Apesar de os esforços portugueses se encontrarem centrados na conquista de Tânger após a tomada de Ceuta, a proximidade de Alcácer Ceguer a esta última cidade constituía um entrave aos movimentos dos cavaleiros portugueses no seu território exterior e mantinha um enclave inimigo entre uma e outra e uma base para ataques à navegação no Estreito de Gibraltar. São disso exemplo o facto de em 1416 o adail de Ceuta ter sido capturado com mais cinco soldados e encarcerado em Alcácer Ceguer, bem como existe notícia do resgate de 15 cativos em 1426. (REDMAN, 1979, pág. 8, citando Jerónimo de Mascarenhas)
Uma das torres Merinidas da Porta do Mar
No ano de 1458 uma esquadra de 220 navios e 25.000 homens, segundo Rui de Pina, 280 navios e 26.000 homens segundo Damião de Góis, parte do Porto, Lisboa e Lagos com destino a Alcácer Ceguer. Seria a primeira conquista africana do jovem Rei D. Afonso V, muito influenciado pela política expansionista e belicista do infante D. Henrique. Com ele “a política de expansão em Marrocos toma o primeiro plano das preocupações reais”. (LOPES, 1989, pág. 22)
No dia 21 de Outubro a armada chega diante da cidade, que é cercada. O ataque português é implacável, baseado no poder de fogo da artilharia pesada, com o qual as muralhas são seriamente danificadas. No final do dia 22 a cidadela rende-se “condicionalmente, isto é, os moradores sairiam livremente, com as suas fazendas, e entregariam todos os cativos cristãos que estavam em seu poder” (LOPES, 1989, pág. 22). No dia 23 de manhã as tropas portuguesas ocupam Alcácer Ceguer. A conquista foi facilitada pelo facto de parte da armada portuguesa ter sido desviada acidentalmente pelo vento para diante de Tânger, acontecimento que confundiu os marroquinos, e evitou que concentrassem forças na sua defesa.
Marmol y Carvajal tem a seguinte descrição da tomada da cidade:
“Assim que o Rei chegou diante da praça, preparou todos os barcos e chalupas para fazer o desembarque, que rapidamente se encheram, tendo em conta a quantidade de navios e o desejo que cada um tinha de combater. Mas o desembarque não foi tão fácil como se pensara, por causa de cinco centenas de cavaleiros que vieram opor-se, com uma quantidade de infantaria (…) No entanto, os habitantes vendo em perigo os seus bens, as suas vidas e a sua liberdade, começaram a fortificar-se o melhor que puderam. Mas não lhes foi dado o tempo necessário para tal, já que estando tudo pronto e em boa ordem, o Rei deu ordem de carga, e de atacar por todos os lados; o que se fez com tanta fúria, que apesar de os Mouros se defenderem bem, devido à artilharia e fogos de artifício, foram obrigados a retirar para a cidade. Os Cristãos perseguiram-nos até às portas (…) O desagrado do Rei foi grande, ao ver a resistência dos sitiados, e as baixas que sofreu, que de imediato fez aproximar os manteletes para sapar as muralhas e mandou o Infante D. Henrique colocar as escadas para iniciar o assalto. O combate foi grande (…) durou até à meia-noite com muitos mortos e feridos de parte a parte.” (MARMOL y CARVAJAL, 1667, pág. 234-235)
De acordo com Marmol y Carvajal, os habitantes renderam-se, e os combates cessaram com a libertação dos prisioneiros cristãos que estavam na prisão da cidade e com a entrega de reféns mouros. Na manhã seguinte abandonaram a cidade com os seus bens e as tropas portuguesas entraram no seu interior.
Muralhas e torreões de Alcácer Ceguer
Damião de Góis, na sua Crónica do Príncipe D. João, confirma de forma geral os factos descritos por Marmol y Carvajal, dando conta do desembarque português na praia na tarde do dia 21 de Outubro, utilizando centenas de bateis, “e como os que iam nos bateis cada um desejasse para si a honra de ser o primeiro que saísse, foi a voga feita com tanta pressa, que quase todos vararam na praia de modo, que nunca se pode saber na verdade qual fora o primeiro que chegara, nem a primeira pessoa que saíra.” (GOIS, 1724, pág. 47)
Na praia estavam à sua espera “mais de quinhentos Mouros de cavalo, e muitos de pé”, que, no seguimento da batalha, muitos se recolheram para a Vila e outros fugiram para a serra. “Dos nossos ao desembarcar foram muitos feridos, dos quais morreram Rui Gonçalves de Marchena, Capitão de homens de pé, e Rui Barrero Comendador da Ordem de Cristo, homens nobres, e bons Cavaleiros, e na fugida dos Mouros, por seguir o alcance deles até muito perto da Vila, João Fernandes Darca, homem nobre, e bem cortesão lhe deram uma pedrada, de que logo caiu morto”. (GOIS, 1724, pág. 47-48)
Entretanto chegou a noite e o Rei mandou retirar, preparando-se os apetrechos necessários para o tomar de assalto a Vila. Na manhã seguinte, dia 22, foi dada ordem de ataque e “fazer rosto às tranqueiras da Vila”, sendo recebidos por tiros de artilharia. Os mouros não conseguiram suster o ataque e retiraram para dentro de muros, “do que sendo sabedores os de cavalo da Companhia do Infante D. Henrique, quebraram as portas das mesmas tranqueiras, e entrando de tropel por elas, foram acometer as da Vila, as quais por serem barradas de grossas chapas, e lâminas de ferro, não puderam quebrar”. (GOIS, 1724, pág. 49)
Os portugueses não conseguiram entrar na Vila até ao sol posto e “foram constrangidos a se afastar deixando o combate, até que se pusessem as mantas ao muro, e outros engenhos, para com menos perigo entrarem a Vila”. (GOIS, 1724, pág. 49-50) Era meia noite, quando se verificou que não se conseguia tomar a Vila escalando os seus muros, pelo que foi colocada uma bombarda de grande calibre com a qual se destruiu parte do pano da muralha. Os moradores perceberam que não conseguiriam evitar a derrota e propuseram entregar a Vila com a “condição de os deixarem sair dela livremente sem receberem dano, levando consigo suas mulheres, filhos, familiares e fazenda”. (GOIS, 1724, pág. 52)
As torres Merinidas integradas no Castelo e a Porta do Mar
Assim foi, e na manhã seguinte, “que era quarta-feira 23 dias de Outubro de 1458 despejaram os Mouros a Vila, levando consigo suas mulheres, filhos e fazenda, sem dos nossos receberem nenhum agravo: porque o Infante D. Fernando tomou a cargo a segurança deles, e se pôs da banda do Sertão com sua gente, para defender que lhes não fosse feito nojo, e também para por vigias que não levassem consigo nenhum Cristão ou Cristã cativo. (GOIS, 1724, pág. 53)
“Como a Vila foi despejada, que seria horas de meio dia, El Rei entrou nela a pé, e em procissão se foi à Mesquita, e a fez consagrar, e dedicar ao nome de nossa Senhora da Conceição.” (GOIS, 1724, pág. 53)
Durante os meses de Novembro e Dezembro, a cidade é cercada durante 53 dias pelo sultão de Fez Abdel Haq, numa tentativa de a reaver, mas o cerco é levantado sem resultados. Nos meses de Julho e Agosto do ano seguinte Alcácer é de novo cercada, mas volta a resistir. Os louros da sua invencibilidade são atribuídos pelo cronista Zurara ao capitão da Praça, D. Duarte de Meneses, filho do capitão de Ceuta, D. Pedro de Meneses.
As datas e duração exacta do cerco não são consensuais nas fontes, conforme refere João Braga da Cruz, já que, “segundo Luis del Mármol y Carvajal o cerco inicia-se por volta do mês de Dezembro. De acordo com Elaine Sanceau, o cerco ocorre de 13 de Novembro de 1458 a 2 de Janeiro de 1459. Já na crónica de Zurara, o dia 11 de Novembro parece marcar o início de um assédio que duraria mais de 50 dias”. (CRUZ, 2015, pág. 41)
Alcácer Ceguer durante o século XV. Fonte Jorge Correia
O período inicial da ocupação portuguesa, em termos de intervenções nas estruturas defensivas, foi ocupado com as reparações dos estragos feitos durante a conquista da cidade. Mas o cerco do final de 1458 demonstrou que Alcácer não estava adaptada às necessidades dos portugueses e obrigaria à realização de obras mais profundas que se realizaram durante o século XV e que tiveram uma filosofia claramente tardo-medieval. Segundo Jorge Correia, terá provavelmente sido desse período a regularização do traçado da muralha, formado um circulo perfeito de 200 metros de diâmetro e cerca de 30.000 m2 de área, a construção dos torreões semicirculares e a abertura do fosso.
“Dúvidas não existem no que à abertura de uma cava em torno da vila diz respeito, depois de uma avaliação do capitão ter constatado a planura da implantação da vila. Desta forma, a água permitia formar um canal em redor da praça, aproveitando, eventualmente, parte do curso fluvial.”(CORREIA, 2008, pág. 152)
Mas havia que voltar costas ao território e abrir a cidadela ao mar, protegendo-a dos ataques terrestres e garantindo o seu abastecimento por via marítima. É então construída uma primeira couraça, ligando a muralha ao rio, que segundo Rui de Pina, “a dita coiraça se começou logo à segunda feira de Ramos XXII dias de Março do ano de mil quatrocentos e cinquenta e nove (…) a dita coiraça não se acabou senão depois do S. João do dito ano”. (PINA, 1902, pág. 5-6)
“A palavra couraça significa, em termos gerais, uma muralha perpendicular ao muro de uma fortificação, realizada para proteger o abastecimento. Deriva do árabe qawraya, que sabemos se empregava pelo menos desde o século XIII (…) As couraças, como assinala Huici Miranda, protegiam um caminho até um poço ou, como nos diz Robert Ricard, a um rio ou inclusivamente ao mar.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, p. 365)
As couraças seriam um elemento constante e marcante das fortificações portuguesas em Marrocos, garantindo não só que as manobras de abastecimento se realizassem em segurança, como o próprio controlo da zona ribeirinha enquanto território vital à sua sobrevivência.



sábado, 24 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Ouvir as palavras de Álvaro de Campos

Ouvir as palavras de Álvaro Campos:
Ultimatum: Mandato de Despejo aos Madarins do Mundo


Álvaro de Campos é um dos heterônimos mais conhecidos do poeta português Fernando Pessoa. Este fez uma biografia para cada um dos seus heterônimos e declarou assim que Álvaro de Campos: Nasceu em Tavira da Serra Grande, teve uma educação exemplar de Liceu; depois foi para Glasgowsky, Escócia, estudar engenharia naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente Médio de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade. Ultimatum Mandado de despejo aos mandarins do mundo Fora tu, reles esnobe plebeu E fora tu, imperialista das sucatas Charlatão da sinceridade e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro Ultimatum a todos eles E a todos que sejam como eles Todos! Monte de tijolos com pretensões a casa Inútil luxo, megalomania triunfante E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral Que nem te queria descobrir Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular Que confundis tudo Vós, anarquistas deveras sinceros Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores Para quererem deixar de trabalhar Sim, todos vós que representais o mundo Homens altos Passai por baixo do meu desprezo Passai aristocratas de tanga de ouro Passai Frouxos Passai radicais do pouco Quem acredita neles? Mandem tudo isso para casa Descascar batatas simbólicas Fechem-me tudo isso a chave E deitem a chave fora Sufoco de ter só isso a minha volta Deixem-me respirar Abram todas as janelas Abram mais janelas Do que todas as janelas que há no mundo Nenhuma idéia grande Nenhuma corrente política Que soe a uma idéia grão E o mundo quer a inteligência nova A sensibilidade nova O mundo tem sede de que se crie Porque aí está apodrecer a vida Quando muito é estrume para o futuro O que aí está não pode durar Porque não é nada Eu da raça dos navegadores Afirmo que não pode durar Eu da raça dos descobridores Desprezo o que seja menos Que descobrir um novo mundo Proclamo isso bem alto Braços erguidos Fitando o Atlântico E saudando abstratamente o infinito."