quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Chove. E é triste.

Basta de sermos apenas espectadores!

In Expresso Curto
"Estranho mundo este em que um dia de chuva nos preocupa como se fosse uma guerra e uma guerra nos parece tão banal como um dia de chuva"
Ricardo Marques
RICARDO MARQUES
JORNALISTA
 
Chove. E é triste
28 de Fevereiro de 2018
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Há poucas coisas tão simples e tão complicadas como o tempo que faz lá fora numa manhã como esta. É o inverno, e o inverno é assim. É feito de chuva, de neve, de vento forte e de mar bravo, de trovoadas e granizo e frio. Há escolas fechadas, estradas cortadas, acidentes de trânsito e pessoas a quem acontecem coisa más. Muito más. Mas olhamos pela janela como quem olha para o mundo. E aceitamos. Faz parte da vida.


O mais complicado é explicar porquê. Porque é que, de repente, desata a chover e a nevar e há alertas de todas as cores? Tem a ver com o posicionamento do anticiclone dos Açores? Em parte, sim. Está iminente o choque de uma massa de ar quente vinda do Atlântico com uma massa de ar frio vinda da Rússia? Também - e quanto maior a diferença entre as duas massas mais severas são as condições do tempo. Mas há algo mais.

Comece por este artigo e siga para o The Guardian, onde é possível ler este texto que ajuda a complicar a situação. "Apesar de a maioria das notícias nos últimos dias terem tratado o frio na Europa num tom descontraído, existe a preocupação de que estamos a assistir não ao regresso dos invernos normais, mas sim à deslocação de algo que deveria estar a acontecer mais a norte", escreve o jornal. (Guerras de bolas de neve no Vaticano sempre deram melhores imagens do quegente a morrer de frio.)


O estado do tempo que temos, e que aceitamos calmamente sem pensar duas vezes, é na verdade a consequência direta de um fenómeno sério que terá ocorrido no vórtice polar, ao nível da estratosfera. Claro que, a seguir, será preciso explicar o que causou esse fenómeno e, provavelmente, o que causou a causa e por aí fora. E é aqui que, mesmo depois de ler o artigo, nos perdemos. A estratosfera é demasiado longe, o vórtice polar demasiado estranho e, convenhamos, há sempre coisas mais importantes.


A meteorologia ainda é uma ciência avessa aos extremos. Os meteorologistas são capazes de descrever o nascimento do elefante que está a chegar, podemprever o percurso que o paquiderme vai fazer e até se o dito vai ficar cansado pelo caminho. Avisam-nos que não é recomendável estar à frente do bicho e que, provavelmente, vai haver estragos. Mas há duas coisas que não conseguem garantir: quantos elefantes vão nascer e onde é que as suas enormes patas vão cair com mais força.

Essa incerteza – que nos leva a discutir se existe aquecimento global e a ficar em pânico com a seca e também com o excesso de chuva - é a derradeira certeza de que o ser humano ainda não sabe tudo. Mesmo que pense que sim.

Os homens conseguem meter um míssil numa janela do terceiro andar de um prédio numa rua na Síria, mas não conseguem adivinhar o local exato que vai ser arrasado por um tornado. São capazes de apontar uma arma carregada à cabeça de outro ser humano e de apertar o gatilho, com a certeza de que vão tirar uma vida, mas nada sabem sobre a próxima grande cheia. Sabem exatamente a quantidade de químicos que devem meter numa ogiva para desaparecer toda a vida num bairro, mas não lhes peçam para indicar qual árvore que vai ser destruída por um raio.

E depois olham incrédulos para o que resta de uma aldeia destruída por um deslizamento de terras, mas não perdem um minuto a olhar para uma cidade arrasada por bombas. A natureza é imprevisível, implacável e capaz de estragos que nos deixam desesperados com a nossa ignorância.

Estranho mundo este em que um dia de chuva nos preocupa como se fosse uma guerra e uma guerra nos parece tão banal como um dia de chuva. É ténue a linha que separa o inverno do inferno.

Olhamos pela janela, ainda chove. E nunca vai deixar de chover, porque estaremos sempre demasiado ocupados atentar compreender absolutamente a natureza e sem tempo para nos confrontarmos, a sério, com a irracionalidade dos nossos próprios atos.
 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Alcácer Ceguer, a cidade redonda

Alcácer Ceguer, a cidade redonda


O arco da Couraça de Alcácer Ceguer
A história de Alcácer Ceguer encontra-se intimamente ligada ao Estreito de Gibraltar e à travessia entre as suas margens. Assim foi no período do Al-Andalus, servindo de base para o embarque dos exércitos muçulmanos durante as várias ofensivas na Península, como durante o período das praças-fortes portuguesas, assegurando uma continuidade do domínio da navegação ao longo da costa marroquina, uma espécie de vigia de alerta à actividade do “corso da barbária”.
Apesar disso, Alcácer Ceguer nunca assegurou o domínio territorial terrestre português na margem Sul do Estreito, apesar da sua reduzida distância a Ceuta e Tânger, devido à irregularidade do terreno e à luta constante que as tribos da região e o poder do Reino de Fez impuseram. À semelhança de todas as outras praças-fortes, Alcácer foi um reduto fechado ao território envolvente, abrindo-se apenas para o mar, tenda na sua Couraça o elemento prático e simbólico dessa abertura.
Abandonada após a evacuação portuguesa, a cidadela degradou-se e tornou-se num sítio arqueológico. Desde há alguns anos que começou a ser escavada e estudada e hoje os seus principais vestígios encontram-se em recuperação e valorização, permitindo uma visita esclarecedora daquilo que foi o “castelo da travessia” durante o período da ocupação portuguesa.
O Estreito de Gibraltar, vendo-se ao centro o Rochedo de Gibraltar, “Jebel Tarik” ou Montanha de Tarik
Antes do século X existia no local um ribat que conheceu várias designações, como Kasr Sad (nome de uma surat do Alcorão), Marsa Bab Al-Yem (Porto da Porta do Mar), Marsa Al-Yem (Porto do Mar), Bab al Kasr (Porta do Castelo), Madinat Al-Yem (Cidade do Mar) e Al-Kasr Al-Awel (O Primeiro Castelo). Estas designações reflectem bem a vocação marítima do castelo. Aliás, as pequenas baías e praias situadas entre Ceuta e Tânger cumpriram um papel fundamental na logística de travessia do Estreito por Tarik Ibn Zyad e Mussa Ibn Nussayr em 711 e 712. Posteriormente, Alcácer Ceguer seria o ponto de travessia para as invasões Almorávida e Almóada, tendo as tropas de Yussuf Ibn Tachfin utilizado o local em 1088 e as de Abdel Moumen em 1195. (EL BOUDJAY, 2017, entrevista citada)
No período Almóada o castelo chama-se Qasr Masmuda, nome de uma das principais confederações de tribos Berberes de Marrocos. O geógrafo Al-Idrisi, na sua Geografia do Ocidente, fala assim do Estreito de Gibraltar e da localização do Qasr Masmuda:
“O comprimento deste estreito conhecido pelo nome de Zuqâq (“a ruela”) é de doze milhas. Na sua extremidade oriental, vemos a cidade de Algeciras (Al-Jazîrat Al-Khadrâ, “A Ilha Verde”) e do lado ocidental a de Tarifa (Jazîra Tarîf, “Ilha de Tarîf”), em face da qual, na margem oposta, está situado Qasr Masmûda (…) Entre Tarîfa e Qasr Masmûda, a distância é de doze milhas.” (AL-IDRISI, 1999, pág. 247)
Nesse período o castelo já se encontrava associado a uma estrutura urbana muralhada, como Al-Idrisi comenta:
“Contam-se doze milhas de Ceuta a Qasr Masmûda para ocidente. É um grande burgo fortificado à beira do mar. Constroem-se aí navios e barcos destinados à navegação para o Al-Andalus. Está situado no estreito, no ponto mais próximo das cidades do Al-Andalus. De Qasr Masmûda a Tanger, contam-se vinte milhas, para ocidente.” (AL-IDRISI, 1999, pág. 249)
O Castelo de Alcácer Ceguer
Al-Hassan Al-Wazzan Al-Fassi, conhecido como Leão “o Africano”, afirma na sua obra “Descrição de Africa” a propósito de Alcácer:
“Esta pequena cidade foi edificada sobre o mar Oceano, distante de Tânger aproximadamente doze milhas, e dezoito de Ceuta, por Mansour, rei de Marrocos, o qual passando todos os anos a Granada, encontrava uma certa passagem entre algumas montanhas por onde se vai ao mar, que é difícil de passar; pelo que, construiu esta cidade numa bela planície, que descobre toda a costa de Granada, e que está à ao alcance desta. A cidade é fortemente defendida, os seus habitantes são quase todos marinheiros, fazendo frequentemente a viagem entre a Barbária e a Europa. Outros são tecelões de teares, muitos são ricos mercadores e gente corajosa. O rei de Portugal tomou-a de assalto, e o rei de Fez tentou, várias vezes, reavê-la por todos os meios que pode: mas trabalhou em vão, no ano de 863 da Hegira (1458 d.C.)” (LÉON AFRICAIN, 1896, pág. 247-248)
Marmol y Carvajal descreve-a desta forma:
“É uma pequena cidade construída por Yacub Almansor sobre a costa do Oceano, quase a meio caminho de Ceuta e de Tânger, no local mais apertado do estreito, que está apenas a cinco milhas de trajecto frente a Tarif. Este príncipe sendo tão guerreiro que vinha quase todos os anos fazer guerra em Espanha, e porque o caminho até Ceuta onde ele embarcava normalmente era incómodo para a passagem de um exército, construiu esta cidade num lugar mais cómodo que está apenas a três léguas da costa de Espanha, num lugar mais vantajoso do estreito, onde existe um bom porto para os navios. Enviou de lá o seu exército e os seus navios com menos perigo que de Ceuta, e chamou-lhe Alcácer Ceguer ou Pequeno Palácio, porque inicialmente construiu apenas um pequeno alojamento em comparação com Alcácer Quibir e outros. Mas em pouco tempo mandou construir várias casas e mesquitas, e encheu-a de uma grande quantidade de mercadores, artesãos e gente do mar.” (MARMOL y CARVAJAL, 1667, pág. 233)
Alcácer Ceguer pré-portuguesa. Fonte Jorge Correia e Charles Redman
As muralhas actuais terão a sua origem no período Merinida, durante o qual o castelo toma o nome de Kasr El Majaz e Kasr El Jawaz, ou Castelo da Travessia ou da Passagem.
Segundo Abdelatif El Boudjay, arqueólogo conservador do local, Alcácer Ceguer “não era uma grande cidade. Foi construída com base num projecto urbano estabelecido e pensado previamente. Tem uma muralha perfeitamente circular construída no reinado do sultão merínida Youssef Ibn Abd Al-Haq em 1287. É uma muralha com altura de quase 8 metros, largura de 1,60 metros, defendida por 29 torres semi-circulares e rasgada por três portas monumentais (Bab Al-Bahr, Bab Fès e Bab Sebta). Um tal projecto urbano apenas podia ser realizado por um poder central.” (EL BOUDJAY, 2017, entrevista citada)
Jorge Correia salienta a singularidade da forma circular do perímetro muralhado e questiona a sua eventual relação com outros exemplos longínquos:
“O desenho quase perfeito de uma circunferência não parece corresponder nem aos canones do mundo islâmico nem à tradição de construção de cortinas fortificadas no Norte de Africa nem no Al-Andalus, representada pelos Almorávidas, os Almóadas ou os Merinidas. Contudo, poderemos ler em Qsar es-Seghir uma réplica do modelo circular da grande capital Abássida, Bagdade?”(CORREIA, 2013, pág. 2)
A designação actual, Ksar Seghir ou Castelo Pequeno, remonta provavelmente ao final do século XV, quando se torna num ninho de corsários. No período da ocupação portuguesa o nome é adaptado para Alcácer Ceguer ou simplesmente Alcácer. Apesar de os esforços portugueses se encontrarem centrados na conquista de Tânger após a tomada de Ceuta, a proximidade de Alcácer Ceguer a esta última cidade constituía um entrave aos movimentos dos cavaleiros portugueses no seu território exterior e mantinha um enclave inimigo entre uma e outra e uma base para ataques à navegação no Estreito de Gibraltar. São disso exemplo o facto de em 1416 o adail de Ceuta ter sido capturado com mais cinco soldados e encarcerado em Alcácer Ceguer, bem como existe notícia do resgate de 15 cativos em 1426. (REDMAN, 1979, pág. 8, citando Jerónimo de Mascarenhas)
Uma das torres Merinidas da Porta do Mar
No ano de 1458 uma esquadra de 220 navios e 25.000 homens, segundo Rui de Pina, 280 navios e 26.000 homens segundo Damião de Góis, parte do Porto, Lisboa e Lagos com destino a Alcácer Ceguer. Seria a primeira conquista africana do jovem Rei D. Afonso V, muito influenciado pela política expansionista e belicista do infante D. Henrique. Com ele “a política de expansão em Marrocos toma o primeiro plano das preocupações reais”. (LOPES, 1989, pág. 22)
No dia 21 de Outubro a armada chega diante da cidade, que é cercada. O ataque português é implacável, baseado no poder de fogo da artilharia pesada, com o qual as muralhas são seriamente danificadas. No final do dia 22 a cidadela rende-se “condicionalmente, isto é, os moradores sairiam livremente, com as suas fazendas, e entregariam todos os cativos cristãos que estavam em seu poder” (LOPES, 1989, pág. 22). No dia 23 de manhã as tropas portuguesas ocupam Alcácer Ceguer. A conquista foi facilitada pelo facto de parte da armada portuguesa ter sido desviada acidentalmente pelo vento para diante de Tânger, acontecimento que confundiu os marroquinos, e evitou que concentrassem forças na sua defesa.
Marmol y Carvajal tem a seguinte descrição da tomada da cidade:
“Assim que o Rei chegou diante da praça, preparou todos os barcos e chalupas para fazer o desembarque, que rapidamente se encheram, tendo em conta a quantidade de navios e o desejo que cada um tinha de combater. Mas o desembarque não foi tão fácil como se pensara, por causa de cinco centenas de cavaleiros que vieram opor-se, com uma quantidade de infantaria (…) No entanto, os habitantes vendo em perigo os seus bens, as suas vidas e a sua liberdade, começaram a fortificar-se o melhor que puderam. Mas não lhes foi dado o tempo necessário para tal, já que estando tudo pronto e em boa ordem, o Rei deu ordem de carga, e de atacar por todos os lados; o que se fez com tanta fúria, que apesar de os Mouros se defenderem bem, devido à artilharia e fogos de artifício, foram obrigados a retirar para a cidade. Os Cristãos perseguiram-nos até às portas (…) O desagrado do Rei foi grande, ao ver a resistência dos sitiados, e as baixas que sofreu, que de imediato fez aproximar os manteletes para sapar as muralhas e mandou o Infante D. Henrique colocar as escadas para iniciar o assalto. O combate foi grande (…) durou até à meia-noite com muitos mortos e feridos de parte a parte.” (MARMOL y CARVAJAL, 1667, pág. 234-235)
De acordo com Marmol y Carvajal, os habitantes renderam-se, e os combates cessaram com a libertação dos prisioneiros cristãos que estavam na prisão da cidade e com a entrega de reféns mouros. Na manhã seguinte abandonaram a cidade com os seus bens e as tropas portuguesas entraram no seu interior.
Muralhas e torreões de Alcácer Ceguer
Damião de Góis, na sua Crónica do Príncipe D. João, confirma de forma geral os factos descritos por Marmol y Carvajal, dando conta do desembarque português na praia na tarde do dia 21 de Outubro, utilizando centenas de bateis, “e como os que iam nos bateis cada um desejasse para si a honra de ser o primeiro que saísse, foi a voga feita com tanta pressa, que quase todos vararam na praia de modo, que nunca se pode saber na verdade qual fora o primeiro que chegara, nem a primeira pessoa que saíra.” (GOIS, 1724, pág. 47)
Na praia estavam à sua espera “mais de quinhentos Mouros de cavalo, e muitos de pé”, que, no seguimento da batalha, muitos se recolheram para a Vila e outros fugiram para a serra. “Dos nossos ao desembarcar foram muitos feridos, dos quais morreram Rui Gonçalves de Marchena, Capitão de homens de pé, e Rui Barrero Comendador da Ordem de Cristo, homens nobres, e bons Cavaleiros, e na fugida dos Mouros, por seguir o alcance deles até muito perto da Vila, João Fernandes Darca, homem nobre, e bem cortesão lhe deram uma pedrada, de que logo caiu morto”. (GOIS, 1724, pág. 47-48)
Entretanto chegou a noite e o Rei mandou retirar, preparando-se os apetrechos necessários para o tomar de assalto a Vila. Na manhã seguinte, dia 22, foi dada ordem de ataque e “fazer rosto às tranqueiras da Vila”, sendo recebidos por tiros de artilharia. Os mouros não conseguiram suster o ataque e retiraram para dentro de muros, “do que sendo sabedores os de cavalo da Companhia do Infante D. Henrique, quebraram as portas das mesmas tranqueiras, e entrando de tropel por elas, foram acometer as da Vila, as quais por serem barradas de grossas chapas, e lâminas de ferro, não puderam quebrar”. (GOIS, 1724, pág. 49)
Os portugueses não conseguiram entrar na Vila até ao sol posto e “foram constrangidos a se afastar deixando o combate, até que se pusessem as mantas ao muro, e outros engenhos, para com menos perigo entrarem a Vila”. (GOIS, 1724, pág. 49-50) Era meia noite, quando se verificou que não se conseguia tomar a Vila escalando os seus muros, pelo que foi colocada uma bombarda de grande calibre com a qual se destruiu parte do pano da muralha. Os moradores perceberam que não conseguiriam evitar a derrota e propuseram entregar a Vila com a “condição de os deixarem sair dela livremente sem receberem dano, levando consigo suas mulheres, filhos, familiares e fazenda”. (GOIS, 1724, pág. 52)
As torres Merinidas integradas no Castelo e a Porta do Mar
Assim foi, e na manhã seguinte, “que era quarta-feira 23 dias de Outubro de 1458 despejaram os Mouros a Vila, levando consigo suas mulheres, filhos e fazenda, sem dos nossos receberem nenhum agravo: porque o Infante D. Fernando tomou a cargo a segurança deles, e se pôs da banda do Sertão com sua gente, para defender que lhes não fosse feito nojo, e também para por vigias que não levassem consigo nenhum Cristão ou Cristã cativo. (GOIS, 1724, pág. 53)
“Como a Vila foi despejada, que seria horas de meio dia, El Rei entrou nela a pé, e em procissão se foi à Mesquita, e a fez consagrar, e dedicar ao nome de nossa Senhora da Conceição.” (GOIS, 1724, pág. 53)
Durante os meses de Novembro e Dezembro, a cidade é cercada durante 53 dias pelo sultão de Fez Abdel Haq, numa tentativa de a reaver, mas o cerco é levantado sem resultados. Nos meses de Julho e Agosto do ano seguinte Alcácer é de novo cercada, mas volta a resistir. Os louros da sua invencibilidade são atribuídos pelo cronista Zurara ao capitão da Praça, D. Duarte de Meneses, filho do capitão de Ceuta, D. Pedro de Meneses.
As datas e duração exacta do cerco não são consensuais nas fontes, conforme refere João Braga da Cruz, já que, “segundo Luis del Mármol y Carvajal o cerco inicia-se por volta do mês de Dezembro. De acordo com Elaine Sanceau, o cerco ocorre de 13 de Novembro de 1458 a 2 de Janeiro de 1459. Já na crónica de Zurara, o dia 11 de Novembro parece marcar o início de um assédio que duraria mais de 50 dias”. (CRUZ, 2015, pág. 41)
Alcácer Ceguer durante o século XV. Fonte Jorge Correia
O período inicial da ocupação portuguesa, em termos de intervenções nas estruturas defensivas, foi ocupado com as reparações dos estragos feitos durante a conquista da cidade. Mas o cerco do final de 1458 demonstrou que Alcácer não estava adaptada às necessidades dos portugueses e obrigaria à realização de obras mais profundas que se realizaram durante o século XV e que tiveram uma filosofia claramente tardo-medieval. Segundo Jorge Correia, terá provavelmente sido desse período a regularização do traçado da muralha, formado um circulo perfeito de 200 metros de diâmetro e cerca de 30.000 m2 de área, a construção dos torreões semicirculares e a abertura do fosso.
“Dúvidas não existem no que à abertura de uma cava em torno da vila diz respeito, depois de uma avaliação do capitão ter constatado a planura da implantação da vila. Desta forma, a água permitia formar um canal em redor da praça, aproveitando, eventualmente, parte do curso fluvial.”(CORREIA, 2008, pág. 152)
Mas havia que voltar costas ao território e abrir a cidadela ao mar, protegendo-a dos ataques terrestres e garantindo o seu abastecimento por via marítima. É então construída uma primeira couraça, ligando a muralha ao rio, que segundo Rui de Pina, “a dita coiraça se começou logo à segunda feira de Ramos XXII dias de Março do ano de mil quatrocentos e cinquenta e nove (…) a dita coiraça não se acabou senão depois do S. João do dito ano”. (PINA, 1902, pág. 5-6)
“A palavra couraça significa, em termos gerais, uma muralha perpendicular ao muro de uma fortificação, realizada para proteger o abastecimento. Deriva do árabe qawraya, que sabemos se empregava pelo menos desde o século XIII (…) As couraças, como assinala Huici Miranda, protegiam um caminho até um poço ou, como nos diz Robert Ricard, a um rio ou inclusivamente ao mar.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, p. 365)
As couraças seriam um elemento constante e marcante das fortificações portuguesas em Marrocos, garantindo não só que as manobras de abastecimento se realizassem em segurança, como o próprio controlo da zona ribeirinha enquanto território vital à sua sobrevivência.



sábado, 24 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Ouvir as palavras de Álvaro de Campos

Ouvir as palavras de Álvaro Campos:
Ultimatum: Mandato de Despejo aos Madarins do Mundo


Álvaro de Campos é um dos heterônimos mais conhecidos do poeta português Fernando Pessoa. Este fez uma biografia para cada um dos seus heterônimos e declarou assim que Álvaro de Campos: Nasceu em Tavira da Serra Grande, teve uma educação exemplar de Liceu; depois foi para Glasgowsky, Escócia, estudar engenharia naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente Médio de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade. Ultimatum Mandado de despejo aos mandarins do mundo Fora tu, reles esnobe plebeu E fora tu, imperialista das sucatas Charlatão da sinceridade e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro Ultimatum a todos eles E a todos que sejam como eles Todos! Monte de tijolos com pretensões a casa Inútil luxo, megalomania triunfante E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral Que nem te queria descobrir Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular Que confundis tudo Vós, anarquistas deveras sinceros Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores Para quererem deixar de trabalhar Sim, todos vós que representais o mundo Homens altos Passai por baixo do meu desprezo Passai aristocratas de tanga de ouro Passai Frouxos Passai radicais do pouco Quem acredita neles? Mandem tudo isso para casa Descascar batatas simbólicas Fechem-me tudo isso a chave E deitem a chave fora Sufoco de ter só isso a minha volta Deixem-me respirar Abram todas as janelas Abram mais janelas Do que todas as janelas que há no mundo Nenhuma idéia grande Nenhuma corrente política Que soe a uma idéia grão E o mundo quer a inteligência nova A sensibilidade nova O mundo tem sede de que se crie Porque aí está apodrecer a vida Quando muito é estrume para o futuro O que aí está não pode durar Porque não é nada Eu da raça dos navegadores Afirmo que não pode durar Eu da raça dos descobridores Desprezo o que seja menos Que descobrir um novo mundo Proclamo isso bem alto Braços erguidos Fitando o Atlântico E saudando abstratamente o infinito."





(Diálogos Lusófonos) As Flores do Imperador

"Descritas por eruditos e botânicos, as flores foram representadas em álbuns profusamente ilustrados."

As Flores do Imperador

Do Bolbo ao Tapete      
                                                                                                                                       
Até 21 maio 2018  
10:00 até 17:30,  na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
Ao longo do século XVI, as amplas relações que os europeus estabeleceram com o mundo redimensionaram o seu conhecimento acerca da natureza. Das Índias Orientais e Ocidentais aportaram na Europa novos produtos e novas espécies de plantas e de animais. Do Levante chegaram sementes e bolbos de flores exóticas. Alvo de profunda admiração, a beleza destas flores motivou uma crescente atenção dos botânicos sobre o estudo da flora exótica e local. Muito requeridas e apreciadas por curiosos, eruditos e aristocratas, as flores passaram a ter lugar privilegiado nos jardins então criados. No entanto, apenas os jardins dos mais afortunados exibiam exemplares das tão requeridas plantas exóticas. Descritas por eruditos e botânicos, as flores foram representadas em álbuns profusamente ilustrados. Estes impressos tiveram ampla circulação na Europa e nos vastos espaços imperiais. Levados por viajantes e emissários europeus nas suas missões diplomáticas, religiosas e comerciais, estes volumes chegaram, desde finais do século XVI à corte Mogol onde foram muito apreciados. Sob o patrocínio imperial, os artistas locais ensaiaram as técnicas de desenho e os modelos de representação patentes nos compêndios europeus.Inline image

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) Como o Brasil “tirou o Carnaval do povo”

Como o Brasil “tirou o Carnaval do povo”. André Jordan regressa ao morro de onde saiu o samba

12 fev, 2018 - 20:00 • Catarina Santos
Carnaval rima com samba no Brasil, mas não foi sempre assim. André Jordan, empresário do turismo que vive em Portugal há quase 50 anos, foi um dos responsáveis pela abertura daquele género musical à classe média e alta carioca, na década de 1950. Com as irmãs Dalal Achcar e Aniela Jordan de visita a Portugal, a família faz uma viagem no tempo para recordar como o samba saiu do morro. Apesar de o carnaval estar hoje dominado por patrocinadores e ter perdido "espontaneidade", continua a ser "o escape" do povo.
e ouça aqui, André Jordan»»»»




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

(Diálogos Lusófonos) A condenação de Lula vai muito além dos tribunais ou da política


Escrito por Felipe Honorato
Não sei se foi propriamente o magistral Antônio Cândido quem cunhou esta colocação. Sei apenas que, em um prefácio de um livro de Sérgio Buarque de Hollanda, Cândido cita e explica o porquê de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, do mesmo Sérgio Buarque, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior, serem consideradas as obras fundadoras do Brasil: “Ao lado de tais livros, a obra por tantos aspectos penetrante e antecipadora de Oliveira Viana já parecia superada, cheia de preconceitos ideológicos e uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais”. Eu, particularmente, pediria licença ao grande Antônio Cândido e, na minha humildade e no meu limitado conhecimento da causa, incluiria mais um nome nesta lista tríplice: Afonso de Lima Barreto e seus contos.
Depois que estes pioneiros desenvolveram ideias como o agora contestado mito das três raças fundadoras, estudaram a fundo como o sistema de cultivo agrícola por aqui implantado se assemelhava muito mais com o que os nativos praticavam do que com que os europeus faziam no continente natal, como o português parecia ser predestinado a ser aventureiro, enfim, outros autores e artistas vieram redescobrindo o país, mostrando sua realidade nua e crua; neste grupo, um pouco mais amplo, mas não menos genial, podemos incluir Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Carolina Maria de Jesus, Otávio Ianni, Florestan Fernandes, Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Chico Science, os Racionais Mc´s, Glauber Rocha; além destes, destacarei outros dois nomes que, em algum momento, mesmo sem querer, fizeram com que suas obras se complementassem, ainda que trabalhando com formas de expressão distintas.
Celso Furtado foi um economista brasileiro nascido no sertão da Paraíba. Participou da Segunda Guerra Mundial e, logo depois, obteve seu doutorado na Sorbonne. Trabalhou no DASP, órgão criado por Getúlio Vargas para promover uma reforma no Estado brasileiro, e na CEPAL, no Chile. Deu aulas em universidades como Yale e Cambridge; escreveu seu nome na história das ciências humanas brasileira com a obra canônica “Formação Econômica do Brasil”.
Furtado defendia que o subdesenvolvimento, não só brasileiro, mas como de toda a América Latina, não era uma etapa do processo evolutivo rumo ao desenvolvimento, mas sim um projeto, com características estruturais muito específicas. Isto nos mostrou muito bem, com imagens verossímeis, aquele que é considerado o maior documentarista brasileiro de todos os tempos: Eduardo Coutinho. Sua principal obra – “Cabra Marcado para Morrer” -, assim como a maioria de todas as outras, refletem sobre a realidade do nordeste brasileiro e de sua gente. Coronéis detentores de latinfundios maiores que muitos países do globo, que vivem confortavelmente nas capitais nordestinas, mas impõem aos trabalhadores rurais uma vida planejadamente controlada e cheia de privações – da educação nula ou mínima, até o acesso a bens básicos; capangas 24 horas armados que, ao menor sinal de desacordo com o “poder central”, eliminam a “maçã podre” sem pensar duas vezes; uma classe latifundiária dominante na política e que guia o Estado de acordo com seus interesses. Com suas pequenas variações e particularidades, pode-se dizer que esta é a realidade também do Brasil como um todo: o subdesenvolvimento é um projeto conveniente ao modelo de economia agroexportadora que temos.
Luis Inácio Lula da Silva nasceu em Caetés, agreste pernambucano. Era mais um daqueles fadados a nascer na pobreza e morrer na miséria. Filho da terra onde apenas os coronéis tem direito a alguma coisa, perdeu uma companheira por não ter acesso a médico. Como outros milhões de semelhantes, saiu do Nordeste e foi morar na maior região metropolitana da América do Sul, em busca de uma vida melhor.
Lula poderia ser retratado em algum documentário de Coutinho ou servir de amostra para algum estudo de Celso Furtado; não se contentou com nada disso: como homo politicus que, creio eu, sempre fora, se envolveu com o sindicalismo; ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), o único partido que, até hoje, pode ser considerado, ao pé da letra, um partido de massa na política brasileira.
Desde o começo, muito por suas ideias, e, talvez, também por seu background, Lula foi demonizado: era o candidato que, se eleito, iria espantar o capital privado do país. Assim, perdeu uma eleição para o “caçador de marajás” e mais duas para Fernando Henrique Cardoso, letrado, intelectual, que cristalizava uma imagem oposta à do operário.
Em 2002 a vez de Lula chegou e toda sua perseverança foi recompensada. Luis Inácio, que deveria estar andando quilômetros e mais quilômetros todos os dias para conseguir água, com um diploma técnico do SENAI, havia alcançado o cargo de presidente da República. O “sapo barbudo” não só chegou lá, mas também, como as estatísticas mostram, tocou o país nos oito melhores anos de sua história.
Há um tempo, eu estava em uma aula na USP do professor Jean Tible e falávamos sobre Patrice Lumumba. Lumumba, líder no processo de independência da República Democrática do Congo ante a Bélgica, teve uma morte extremamente violenta que envolveu assassinato e tortura. Sobre o revolucionário congolês, que defendia que os mineirais congoleses deveriam ser propriedade dos congoleses, Tible comentou, de forma irônica, disparando sobre o colonialismo: “grandes problemas precisam de grandes soluções. As ideias de Patrice Lumumba representavam um grande problema às potências coloniais e, por isso, elas lhe deram uma morte tão violenta”. A trajetória homérica de vida de Lula é um grande problema e o McCartismo ao qual ele vem sendo submetido é a grande solução. Afinal, já imaginaram se todos que pertencem a alguma minoria começassem a acreditar no poder do associativismo e do ativismo? E se todos se vissem capazes de fazer política, seja em sua associação de bairro ou na Presidência da República? Seria a inversão da ordem econômica por aqui vigente há 5 séculos – o subdesenvolvimento deixaria de ser nosso projeto nacional.
A ameaça da figura de Lula não para por aí. Para mim, fica claro que, apesar de ter de lidar com os mais diferentes grupos de interesse – e creio que o ex-presidente, ao lado de Nelson Mandela, sejam as personificações do que, nos bancos das faculdades de administração pública, aprendemos ser “diplomatas administrativos” -, Lula nunca esqueceu de quem o elegeu, e muito menos de onde ele veio. Por isso, ele colocou negros e mulheres no alto escalão de seu governo; por esta razão, também, criou programas sociais que tiraram o Brasil do mapa da fome e pluralizou o acesso ao ensino superior e a concursos públicos. Muito se questiona sobre o Bolsa Família ter nascido no governo de Fernando Henrique Cardoso e o grupo de trabalho criado pelo próprio FHC após a emblemática marcha pelos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares ter fornecido as bases para a política de cotas. Fato é que Cardoso deixou tudo em um caráter embrionário; quem transformou estas iniciativas em políticas públicas de proporções continentais foi o nordestino de Caetés. Nas relações internacionais, rodeado por um dream team composto por, entre outros, Celso Amorim e Marco Auréleo Garcia, Lula adotou uma política ativa e altiva, de orientação sul-sul, que colocou o país em lugar de destaque no cenário internacional, a ponto de quase termos coordenado uma iniciativa que poria fim ao impasse nuclear envolvendo o Irã e o ocidente, bem como fez com que Lula ganhasse de Barack Obama, ex-presidente estadunidense, o título de político mais popular da Terra – um contraponto ao histórico das relações internacionais brasileiras.
A condenação de Lula, portanto, ao meu ver, tem as menores das dimensões na justiça ou na impossibilidade dele disputar, novamente, a vaga de mandatário; ela representa uma batalha ferrenha entre o status quo e aquilo que o Brasil poderia ser se Celso Furtado, até hoje, não estivesse tão certo.